quarta-feira, 13 de abril de 2011

CARTA DO REI FELIPE III DA ESPANHA AO GOVERNADOR-GERAL DO BRASIL D. GASPAR DE SOUZA (trechos)

Gaspar de Souza, governador amigo: Eu El Rei vos envio muito saudar! Há poucos dias que o Capitão Diogo de Campos Moreno, que em companhia de Jeronimo de Abuquerque havia ido ao descobrimento das terras do rio Maranhão, na armada que em setembro do ano passado enviastes àquela empresa, chegou a Lisboa com um francês em sua companhia mandados ambos por Jerônimo de Albuquerque, e da sua relação e dos papéis que trouxe, tenho entendido que partindo do Rio Grande (do Norte) a cinco de setembro com trezentos portugueses de mar e guerra, e 220 índios, chegaram ao Pereia, primeira barra do Maranhão em 14 de outubro e entrando dentro tomaram terra defronte da Ilha Grande, donde se dizia que estavam os franceses e que estando já quase fortificados no sítio que tinham escolhido, foram cometidos de uma nau francesa de 400 toneladas e outros muitos navios redondos que lhe tomaram a barra e três embarcações que estavam despejadas, e depois a 19 de novembro vieram os franceses com maior poder e lançaram em 2.500 índios frecheiros e duzentos soldados franceses com os quais pelejaram Jerônimo de Albuquerque e Diogo de Campos Moreno, divididos em dois corpos e os romperam, e lançaram do campo com morte de 115 franceses e muita parte dos índios havendo faltado somente dez portugueses. Depois se moveu pratica de tréguas de parte a parte, e se assentaram por todo o mês de dezembro para, entretanto, me dar conta, e a El Rei de França, a se aguardar resposta de como se havia de proceder, e a solicitá-la vieram a Lisboa Diogo de Campos Moreno e um capitão francês, partindo no mesmo tempo para a França o capitão Fragoso de Albuquerque com dois franceses. Consta também da dita relação e papéis, que passa de três anos que os franceses residem naquelas partes e têm feito alguns fortes, e um mosteiro de frades capuchinhos, e reduzido a sua amizade muitas castas de gentios da terra e que haviam navegado pelo rio acima mais de 300 léguas, e tinham por general o senhor de La Ravardière com título de vice-rei, ao qual se concederam as tréguas por se acharem Jerônimo de Albuquerque e os da sua companhia com grande falta de mantimentos, e sem e nenhuma esperança de socorro. Havendo-se considerado tudo que fica referido com a particular atenção que a qualidade da matéria requer pelo muito que importa à reputação de meu serviço e à conservação desse estado, e dos da Nova Espanha e do Peru, lançar os franceses de todo aquele sítio antes que cresçam em forças, e se dificulte mais o remédio, me pareceu mandar-vos despachar logo este navio com o aviso de sucesso que teve Jerônimo d’Albuquerque (de que se entende que por outra via não podereis ter notícia), encomendar-vos e mandar-vos (como o faço) que tanto que receberdes esta carta, sem mostrar nem dar a entender a pessoa alguma que tendes para isso ordem minha, antes que o fazeis em execução da que quando foste destes reinos se vos havia dado para o descobrimento daquele rio e terras e por vos faltarem novas do estado em que se acha Jerônimo de Albuquerque, ajunteis o maior número de gente, navios e artilharia que deste estado se puderem tirar e embarcando-vos logo sem embargo de quaisquer dúvidas e dificuldades eu se vos ofereçam, vedes em pessoa em todo o caso ao Maranhão porque com vossa presença confio que se acabará aquela empresa que é a maior e mais importante que de presente se podia oferecer, e conforme a isto julgareis que vos hei de agradecer o serviço que nisto me fizerdes. Com os franceses rompereis logo a guerra sem fazer cão das trégua assentadas por Jerônimo de Albuquerque procurando lançá-los de todos os sítios e fortes que têm ocupado sem perder uma hora de tempo, de maneira que indo-lhes socorro de França (que se é de presumir que se lhes enviara tanto que lá chegasse aviso do estado em que ficavam) não seja de efeito e procurando assentar amizade e boa correspondência com os índios, ordenareis ali o fortes que vos parecerem necessários com gente bastante para as defesa e benefício das terras, e para que tornando os franceses não sejam admitidos dos naturais e achem a resistência que convém. Para despesas que se hão de fazer na jornada vós leveis do dinheiro mais pronto que houver nesse estado, que por qualquer via pertença a minha fazenda, sem embargo das ordens que em contrário até agora são dadas, que por esta vez hei por bem de revogar, e posto que seja procedido de junta de (ilegível) e para poderdes fazer assim sem que quebrardes o segredo da ordem que vos dou para a jornada, se vos envia com esta carta a provisão que recebereis juntamente e, não bastando para tudo o direito que houver, o tomareis por empréstimo de qualquer parte, de modo que por falta dele não haja no efeito da jornada. Também se vos enviarão as armas e munições que poderá levar o navio em que vai esta carta, e se irá mandando socorro delas e de gente no mais que depois partirem, para que assim se supra o que houverdes levado ao Maranhão nas partes onde se houver tirado. Com vos encarregar aquela empresa e ter por certo que procedereis nela com o valor e zelo de meu serviço que de vós devo esperar, deponho o cuidado que me poderá obrigar, e de novo vos encomendo a breve execução que totalmente consiste o bom sucesso que se pretende. Quando por algum forçoso e justo impedimento não puderdes fazer a jornada em pessoa, enviareis nela por capitão-mor a Alexandre de Moura, e lhe dareis em todo segredo a ordem referida nesta carta e as mais que vos parecerem necessárias. Nota: Para não cansar o leitor, preferimos reproduzir apenas parte dessa longa carta do rei Felipe III a Gaspar de Souza, citando as partes mais expressivas. Para facilitar a leitura, modernizamos a grafia, tentando conservar o máximo de originalidade do documento. Os interessados poderão estudar o longo texto original e completo na publicação da Comissão Nacional para as Comemorações dos Descobrmentos Portugueses, 2001. Na citada publicação acima mencionada consta também interessante apresentação de Evaldo Cabral de Mello sobre Gaspar de Souza, que reproduzimos em parte para maior informação dos leitores sobre esse notável personagem. Escreveu o ilustre historiador: Gaspar de Souza, que pelo lado materno era um Távora, começou sua carreira como um pajem de D. Duarte, irmão mais moço de D. João III. Feito prisioneiro em Alcácer Quibir, foi resgatado, regressando ao reino, onde Felipe I o fez moço fidalgo e depois fidalgo-escudeiro. [...] Participou de combates navais nos Açores contra a frota francesa e posteriormente da Invencível Armada, no posto de capitão da gente portuguesa, quando se terá distinguido tanto que El-Rei lhe fez novas mercês [...]. em 1590 obteve a capitania da fortaleza de Malaca por três anos e a concessão de viagem à China, que repassou a terceiro. Em 1612 é distinguido com o governo-geral do Brasil. [...] Frei Vicente do Salvador narrou que ele ao chegar à capital “não esperou que o fossem receber com pálio e solenidade, mas secretamente, com um só criado, foi se meter em casa”. [...] Achava-se apenas há quatro meses em Salvador quando teve de regressar a Pernambuco em decorrência da ordem régia que o mandava seguir para o Maranhão, a fim de organizar a terra recentemente conquistada aos franceses. [...] Concluído o triênio brasileiro, Gaspar teve autorização para regressar ao reino. Não deixou de todo, porém, a vida pública. Em 1619 participou das cortes de Tomar e nos anos seguintes teve sua opinião solicitada sobre “coisas tocantes ao Brasil”. Tão relevantes foram julgados os seus serviços que foi premiado com a capitania do juro e herdade do Maranhão (1622). Segundo Varnhagen, de Gaspar de Souza e Alexandre de Moura teria partido a sugestão, endossada pela Coroa, de erigir o Maranhão-Pará em estado separado do Brasil. (Publicado na revista do Instituto Arqueológico, Histórico e Geográfico Pernambucano, volume 51, Recife, 1979, p. 243, seguintes).